Vestibular vermelho

Matéria publicada no jornal A Gazeta do Povo, do Paraná, edição de 10 de setembro de 2007.

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Por Márcio Antonio Campos

Há poucos meses, a mãe de uma aluna de uma escola do interior paulista reclamou de uma tentativa de doutrinação esquerdista no material didático que sua filha usava. A denúncia iniciou uma discussão sobre uma possível influência de movimentos socialistas na escola. E, segundo uma organização que observa a educação no Brasil, até o vestibular está ficando “vermelho”. “Há uma contaminação político-ideológica do ambiente acadêmico que afeta o vestibular, já que o professor militante também é examinador militante”, aponta o advogado Miguel Nagib, coordenador do Escola Sem Partido, grupo criado em 2004. A organização prioriza o ensino fundamental e médio, mas recentemente passou a observar também os vestibulares. Até o momento, o grupo não encontrou nenhum caso de viés ideológico em provas no Paraná, mas aponta problemas no Sudeste e no Nordeste.

Nagib resume as características do que considera uma questão com influências ideológicas: “a realidade é resumida ao lado bom de um lado, e o lado mau do outro; do lado bom estão sempre os trabalhadores, os índios, os países do Terceiro Mundo, revolucionários em geral, Che Guevara – ídolo absoluto –, a Revolução Francesa, Cuba, o MST, o socialismo, o humanismo, o Renascimento; do lado mau estão sempre a Idade Média, a Igreja Católica, os Estados Unidos, o capitalismo, a burguesia, os militares”. No entanto, o advogado faz uma ressalva: “o problema não é falar mal – os erros devem ser sempre apontados. O problema é ignorar e esconder qualquer coisa que os ‘vilões’ tenham feito de bom, e que os ‘mocinhos’ tenham feito de ruim”, diz. A professora Geise Montrezoro, do Bom Jesus, completa: “inverte-se a ‘História dos vencedores’: agora o indígena é bom e o jesuíta é mau. Mas uma História que mostra os vencedores apenas como bandidos não é História de verdade.” Isso não significa, diz Nagib, que todas as questões tenham esse viés, ou distorçam a verdade histórica. “Uma questão ideologizada pode muito bem partir de uma verdade. Mas os diagnósticos sobre as causas daquela realidade sempre batem com a visão da esquerda”, diz.

Os professores ouvidos pelo Caderno do Estudante/Vestibular se dividem sobre a questão. “Não acredito que haja tentativas de fazer a cabeça do vestibulando”, aponta Osvaldo Siqueira, do Unificado. Para ele, a prova exige conhecimento, e não versões de interpretação. “Se o vestibular usa um texto de um escritor marxista como base de uma questão, não quer dizer que o examinador seja marxista”, aponta. “Uma pessoa de direita pode ver doutrinação em uma questão que apenas denuncie problemas reais”, afirma Arno Böing, professor de Geografia no Expoente, que no entanto não exclui a hipótese de tentativas de ideologização.

E como ficam as escolas e cursinhos diante de um vestibular tendencioso? “A prova militante aponta o caminho às escolas que querem bons índices de aprovação: ensinar os alunos a pensar como militantes. No país dos concursos, a verdade é o que está no gabarito”, diz Nagib. Mas Geise não considera os professores reféns da ideologia. “Nesses casos, o professor com bom senso ensina o correto – mas avisa o aluno que, para passar no vestibular, terá de escrever outra coisa”, diz.

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Teoria da infiltração

Socialista italiano defendia presença nas escolas para influenciar cultura

Por Márcio Antonio Campos

Se é que realmente existe tentativa de doutrinação de esquerda nas escolas e vestibulares, a fonte é, provavelmente, a faculdade, graças a um pensador italiano que pode não estar presente em muitas bibliografias, mas cuja doutrina está sendo muito aplicada: Antonio Gramsci. O cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Bráulio Matos explica que Gramsci via a escola como um grande meio de difundir o socialismo. “O ensino, em sua visão, era uma disputa pela hegemonia das idéias”, diz.

“Gramsci concluiu que, em países com sociedade civil muito organizada, seria mais difícil para os comunistas tomar o poder com um golpe; então, o caminho seria uma infiltração permanente na escola, na imprensa e na Igreja, para desmoralizar as tradições burguesas e implodir essas instituições por dentro”, resume Matos. Enquanto o capitalismo consolidaria seu poder sutilmente, reproduzindo seu modo de pensar por meio do ensino, a contestação deveria ser mais agressiva, mas dentro da escola, criando assim uma contra-hegemonia de inspiração socialista. No Brasil, as idéias de Gramsci inspiraram Paulo Freire e a Teologia da Libertação.

“Na nossa época de estudantes, o marxismo era bem forte na universidade. Ainda hoje há historiadores que se pautam por esse modo de pensar”, conta Osvaldo Siqueira, professor do Unificado e da Tuiuti. Seus colegas confirmam essa constatação. “Nunca presenciei, mas já ouvi comentários sobre alunos mais ricos que acabam pichados pelos próprios colegas”, diz Arno Böing, do Expoente, ressaltando que os socialistas perderam força após o fim dos regimes comunistas do Leste Europeu.

No entanto, hoje o cenário já seria diferente. “Surgiram novas escolas de estudo na História que ganharam terreno e enfraqueceram o viés marxista”, descreve Osvaldo. Geise Montrezoro, do Bom Jesus, explica o fascínio dos intelectuais por uma doutrina que exalta o proletário. “Por algumas décadas, ser de esquerda era contestar o regime militar”, diz. Osvaldo concorda: “o intelectual tende a ser crítico, e como o governo era de direita, o intelectual buscava se colocar do lado oposto”, completa.

Militância

Sérgio Vicentin, que leciona História no Colégio Marista Paranaense e também dá aulas na Tuiuti, acredita que a militância é vital para o professor – mas tem uma definição diferente da palavra: “o professor militante, para mim, é aquele que assume posições, mas permite o debate. É o oposto do professor apático, que sequer lê jornal e se contenta em apenas cumprir o programa da matéria”, diz. Para Sérgio, assumir posições é diferente de tentar fazer a cabeça do aluno. “Infelizmente ainda existe muito professor tapado, para quem só valem as próprias idéias. Dependendo da idade do aluno, o professor pode ser uma referência mais importante que os pais, e um mestre que queira impor sua ideologia faz estrago”, afirma. E a ligação com partidos? “Eu sou totalmente contra a militância partidária por parte do professor. Ele deve ser político, mas não partidário. Levar o partido para a educação é um crime”, finaliza.

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As questões “de esquerda”

Confira aqui algumas questões de vestibular consideradas “esquerdistas” pela equipe do Escola Sem Partido, com comentários dos colaboradores do site:Vestibular de inverno Mackenzie (São Paulo) (2007)

59. “O que é meridianamente claro é que a ditadura deixa uma herança arrasadora. Desorganização, miséria, cinismo político, corrupção institucional, inflação de três dígitos e recessão, uma dívida interna e externa calamitosa e combinada ao controle imperialista, programado por dentro da nossa economia e da nossa política econômica, uma burguesia desmoralizada pela aventura contra-revolucionária, um Estado minado por doutrinas e práticas autocráticas, um regime de partidos montado para pulverizar as forças sociais ativas na sociedade civil e, especialmente, para fortalecer o sistema como núcleo de militarização do poder político estatal.” (Florestan Fernandes – Eleições diretas e democracia).

O texto acima, do eminente sociólogo brasileiro, aponta traços de uma “herança arrasadora” legadaa) pelos longos anos do Estado oligárquico, dominado pelos cafeicultores de São Paulo e Minas Gerais, entre 1890 e 1930.

b) pela década e meia do governo conduzido autoritariamente por Getúlio Vargas, após o triunfo do movimento político de 1930.

c) pelos governos populistas de Juscelino Kubitschek e João Goulart, entre 1946 e 1964.

d) pelo regime militar, durante o qual se sucederam cinco presidentes generais, entre 1964 e 1985.

e) pelos desastrosos anos dos governos de Fernando Collor e Itamar Franco, de 1990 a 1995.

Gabarito: d)Comentários: O viés ideológico se manifesta já na escolha do autor: Florestan Fernandes, socialista notório, ícone da esquerda, ex-membro do PT. O texto menciona aspectos negativos do Brasil no fim da ditadura militar, como se antes desta existisse um país de maravilhas que os militares destruíram. Falar de miséria como característica específica do governo militar é falso, pois a miséria existe há séculos em nosso país e foi justamente o milagre econômico da ditadura militar que mais tirou brasileiros da miséria. Culpar os militares pela disseminação da corrupção é fato que não encontra lastro histórico. Basta lembrar que Jânio Quadros ganhou as eleições presidenciais de 1960 prometendo combater a corrupção. É bom lembrar também que a dívida interna não era um grande problema ao fim dos governos militares e que a dívida externa só se tornou gigantesca em razão das duas crises do petróleo ocorridas nos anos 1970. A ditadura pode e deve ser criticada; mas com objetividade e isenção.

60.

• Desregulamentação do mercado nacional
• Ampla política de privatização das empresas estatais
• Manutenção de altas taxas de juros para atração do capital estrangeiro
• Corte de gastos governamentais destinados a serviços e programas sociais
• Flexibilização da legislação trabalhista

As medidas relacionadas acima se destacaram entre as mais importantes da política econômica posta em prática ao longo dos oito anos do governo FHC (1995-2002). Há certo consenso segundo o qual elas permitem caracterizar essa política como sendo

a) nacional-desenvolvimentista.
b) comunista.
c) neoliberal.
d) keynesiana.
e) socialista.

Gabarito: c)Comentários: O candidato que assistiu a pelo menos uma aula de História ou Geografia nos três anos do ensino médio ou no cursinho aprendeu, para nunca mais esquecer, que “o governo FHC foi neoliberal”. Mas no governo FHC não houve “desregulamentação do mercado nacional” – ao contrário, foram criadas as agências reguladoras; não houve corte de gastos destinados a programas sociais – ao contrário, os gastos foram ampliados; não houve elevação de taxas de juros para “atrair capital estrangeiro”, mas para conter a inflação e financiar o déficit público; e não houve qualquer  flexibilização da legislação trabalhista. Exceto pelas privatizações, o governo FHC jamais poderia ser considerado neoliberal.

Universidade Federal de Pernambuco (2007) – Ingresso Extravestibular para o curso de Filosofia

22. Aponte os exemplos de homens éticos com visão filosófica engajada (para além da hipocrisia):a) Bush, Olavo de Carvalho, Editora Abril, Inocêncio de Oliveira e Roberto Marinho.

b) Dalai Lama, Gandhi, Marina da Silva, Frei Beto e Dom Helder.
c) FHC, Marco Maciel, ACM, Ratinho e Reginaldo Rossi.
d) Leonardo Boff, Irmã Dulce, Ariano Suassuna, Betinho e Zilda Arns.
e) Dalai Lama, Gandhi, ACM, Frei Beto e Leonardo Boff.

Gabarito: não foi informado pela universidade

Comentários: Nessa questão o examinador perdeu completamente o pudor e sequer tentou maquiar o viés ideológico da prova. O intuito é tão descarado que uma das alternativas contém uma empresa, a Editora Abril. Para o examinador, quem não é de esquerda não pode ser ético. Note-se, também, a má-fé em tentar nivelar pessoas que não têm praticamente nada em comum, como Olavo de Carvalho e Inocêncio de Oliveira.Veja mais questões em www.escolasempartido.org clicando “Vestibular” no menu da esquerda.

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O QUE DIZEM AS UNIVERSIDADES

A Comissão do Processo Seletivo da Universidade Mackenzie enviou a seguinte nota: “A banca esclareceu que as referidas questões foram formuladas com base em várias fontes, e em todas elas, o conteúdo é condizente com as questões citadas. Lembra ainda que não houve nenhum questionamento por parte das bancas dos principais cursinhos, o que endossa as informações contidas nas mesmas”.

A pró-reitora de Assuntos Acadêmicos da UFPE, professora Lícia Maia, diz que é possível analisar eventuais equívocos nas questões. “Embora neste caso houvesse conceitos subentendidos que poderiam ter sido melhor explicitados, não recebemos nenhum recurso contra essa questão, enquanto nesta mesma prova tivemos outras questões anuladas”, afirma.

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