O pesadelo de Paulo Freire

“Justificar a doutrinação pela inexistência da neutralidade é como tentar justificar o roubo pela existência da cobiça.” Artigo de autoria do advogado Miguel Nagib, fundador do ESP.

Conta-se que, durante o exílio, Paulo Freire teria tido um pesadelo cuja lembrança o atormentou até o fim dos seus dias.

Sonhou que estava numa sala de cirurgia, pronto para ser operado. Viu, então, a seu lado, um homem que parecia haver saído de um chiqueiro, sujo dos pés à cabeça, segurando um bisturi.

‒ Quem é o senhor?, perguntou o futuro Patrono da Educação brasileira.

‒ Sou o médico que vai operá-lo, disse o homem.

‒ Mas o senhor está imundo, suas mãos estão imundas, o bisturi está imundo. O senhor não vai nem se lavar?

E o médico respondeu, enquanto riscava a barriga do paciente com o bisturi:

‒ Lamento, Sr. Paulo, seria inútil. Não existe ambiente que seja livre de contaminação.

Se o leitor já passou pela desagradável experiência de se dirigir à escola de um filho para reclamar do professor de Geografia que usa suas aulas para demonizar o agronegócio e glamourizar o MST; ou do professor de História que não perde uma oportunidade de falar do “golpe de 2016”; ou da professora de Português que obriga os alunos a ler artigos tendenciosos sobre gênero e feminismo, é muito provável que tenha recebido a seguinte resposta: “Ô, pai/mãe, não existe neutralidade!”

“Não existe neutralidade” é o salvo-conduto do professor-militante; a escusa padrão para justificar a pregação ideológica e a propaganda político-partidária em sala de aula.

De fato, se não existe neutralidade, não só não é possível exigir do professor que seja neutro, como é inútil fazê-lo, já que ele nunca o será. O que mais um militante disfarçado de professor precisaria escutar para ceder à ‒ humana ‒ tentação de fazer a cabeça dos alunos?

A dose de má-fé embutida nesse raciocínio é gigantesca. O fato de o conhecimento ser vulnerável à distorção ideológica deveria servir de alerta para que os professores adotassem as precauções necessárias para reduzir a contaminação. Em vez disso, os militantes o utilizam para justificar a doutrinação.

Ora, que a neutralidade não existe, isto é apenas um fato. A questão é saber que atitude devemos tomar diante desse fato.

Devemos relaxar e dar livre curso às nossas paixões, preferências, inclinações e preconceitos? Ou devemos fazer um esforço sincero para controlar e diminuir, tanto quanto possível, a influência desses fatores? Devemos aproveitar que os alunos estão ali, à nossa disposição, sem poder sair da sala, sob a nossa autoridade, dependendo da nossa avaliação, obrigados a nos escutar, a ler o que os mandamos ler e a estudar o que os mandamos estudar, para fagocitá-los ideologicamente, para que abracem nossas causas e votem nos nossos candidatos? Ou devemos fazer o possível para respeitar sua liberdade de consciência e de crença, e auxiliá-los de forma desinteressada na busca do conhecimento?

Como se vê, a questão não se situa na esfera do ser, mas na do dever ser. Não é um problema epistemológico, mas ético e jurídico. Justificar a doutrinação pela inexistência da neutralidade é como tentar justificar o roubo pela existência da cobiça.

Pode ser impossível eliminar totalmente a influência do fator ideológico; mas fazer um esforço metódico para reduzir e controlar essa influência é perfeitamente possível. Um cidadão comum não está obrigado a empreender tal esforço, mas um professor está; assim como um cirurgião, mesmo sabendo ou acreditando que não existe ambiente cirúrgico livre de contaminação, está obrigado a fazer uma assepsia rigorosa antes de abrir a barriga de um paciente.

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