Universidade Federal do ABC (2006) – II

Por Reinaldo Azevedo

Vamos continuar com as maravilhas do vestibular da Universidade Federal do ABC:

CARTA ABERTA SOBRE MOVIMENTO GREVISTA NO ABC PAULISTA
São Paulo, 2 de abril de 1980
Mãe,
Tudo errado nesta greve dos metalúrgicos. Ninguém ouviu as instruções do ministro do Trabalho? Alguém entendeu que, para ser legal, é preciso que não haja incitamento, isto é, que a greve seja espontânea?
Então aprendam rapidamente as regras do jogo. Vamos dizer que você acorde de manhã e, vendo que não tem café nem pão, resolve parar de trabalhar até ter o que comer. Se calhar de os 150 mil metalúrgicos terem a mesma idéia, ao mesmo tempo, na mesma hora, ficará caracterizada a greve espontânea.
Mas, se o tom de voz usado for acima de 0,2 decibéis ou for acompanhado por um cruzar de braços, ficará evidenciado o incitamento. Comunicar tal decisão através de folhetos, circulares, reuniões, concentrações, utilizar megafones, apitos (…) é incitamento dos baitas.
Sim! Desmaiar por fome ou mostrar dedos amputados por tornos é incitamento justificável, mas que, devido ao seu grande apelo, será o mais vigiado. (…)

Henfil
Henfil, Cartas da mãe. 1980.

Vejam lá: sob o pretexto de apego à realidade, a universidade já transforma em “história” a militância do companheiro Babalorixá de Banânia, que era o líder daquela greve, como todo mundo sabe. O pretexto técnico para a questão é saber se o aluno distingue a linguagem formal da informal. Poderia ser uma carta qualquer, de amor por exemplo. Mas não. A questão é para débeis mentais. Evidentemente, não testa nada. Apenas serve ao proselitismo.


19. É correto afirmar que, nesse texto,

(A) o tom coloquial é injustificável, pois cartas requerem formalismo e tratamento respeitoso ao destinatário.
(B) a mãe é um destinatário de ficção, haja vista que, no desenvolvimento, o autor faz referência a outros leitores (“aprendam”, “você”).
(C) a frase é incitamento dos baitas consiste numa impropriedade, pois é incompatível com o discurso coloquial adotado como padrão pelo autor.
(D) predomina a oralidade do diálogo, porque o autor faz perguntas e espera respostas da mãe, estratégia própria da língua falada.
(E) a figura do emissor (Henfil) assume objetividade no tratamento do tema, adotando linguagem emotivamente neutra.

Bem, a resposta “correta” é a “B”. Agora vejam a questão nº 20.


20. Observe as passagens:
Comunicar tal decisão através de folhetos.
Desmaiar por fome.
Mostrar dedos amputados por tornos.
Nelas, os trechos em destaque expressam, correta e respectivamente, circunstâncias com sentido de

(A) meio; causa; instrumento.
(B) meio; modo; finalidade.
(C) finalidade; causa; modo.
(D) modo; tempo; lugar.
(E) finalidade; modo; lugar.

A resposta dada como correta é a “A”. Embora seja uma burrice, também gramatical, compreensível num texto coloquial, mas inaceitável quando se testa o conhecimento da gramática formal. O sol pode passar “através” das nuvens, mas você não se comunica “através” de bilhetes, e sim “por meio” deles. Nesse caso, não são expressões sinônimas. Mas que se dane a gramática. Estamos brincando de cantar as glórias do Apedeuta até num vestibular. Vamos à questão 21:

21. Associada ao desenvolvimento do texto, a afirmação inicial ‘Tudo errado nesta greve dos metalúrgicos’ mostra que o emissor adota, em relação ao assunto de que trata, postura

(A) indiferente.
(B) irônica.
(C) incoerente.
(D) intolerante.
(E) irresponsável.

Vocês sabem que o “companheiro” Henfil, dado o conjunto da carta, só poderia estar sendo “irônico” não é mesmo? Na questão 22, que segue, há um caso de humor involuntário. Acompanhem:

22. Assinale a alternativa em que o trecho do texto, em nova versão, apresenta os verbos empregados de acordo com a norma padrão.

(A) Caso calhar que 150 mil metalúrgicos tenham a mesma idéia, ao mesmo tempo, na mesma hora, ficando caracterizada a greve espontânea.
(B) Alguém entendeu que, para ser legal, é preciso que a greve não ter sido incitada, isto é, ter sido espontânea.
(C) Mas se o tom de voz usado fosse acima de 0,2 decibéis ou fosse acompanhado por um cruzar de braços, ficava evidenciado o incitamento.
(D) Caso se comunicava tal decisão através de folhetos, circulares, reuniões, concentrações, e se utilizavam megafones, apitos, seria incitamento dos baitas.
(E) Digamos que, se você acordar de manhã e vir que não tem café nem pão, resolva parar de trabalhar até ter o que comer.

Você, leitor inteligente e “indignado útil”, já sabe que a resposta certa é a “E”. A mentira histórica passada na carta de Henfil não interessa aos examinadores. Desde quando os metalúrgicos do ABC acordavam sem ter pão para dar aos filhos? Formavam a classe média mais sólida do Brasil. Um metalúrgico, diga-se, muito famoso que emergiu ali tem hoje um patrimônio milionário. É verdade que não enriqueceu no trabalho, mas na política. É pena que a Universidade Federal do ABC não tenha perguntado se os vestibulandos acham justo que Lula receba uma pensão permanente de R$ 4.200. Sem pão ficou muita gente depois das greves. Foi o preço pago para construir o PT. Mas sigamos para a questão 23.


23. Na década de 1980, Henfil mostra, na carta à sua mãe, seu ponto de vista sobre fatos ocorridos na região do ABC. Nessa carta, ele expressa

(A) concordância com a proibição do movimento grevista.
(B) repúdio à desordem social praticada pelos metalúrgicos.
(C) censura aos grevistas por criarem pretexto para a greve.
(D) crítica em relação ao tipo de greve permitido pelo governo.
(E) apoio à greve espontânea defendida pelo ministro do Trabalho.

Evidentemente, a resposta certa é a “D”. Bom, O que isso tudo testou de verdade? Nada! Reparem que cada questão pode ser lida também como um teste ideológico, sem contar que o texto que inspirou as perguntas e o encadeamento das alternativas constituem, por si mesmos, um discurso político. Mais do que político: um discurso partidário. Eis o Brasil que eles estão construindo. E com dinheiro público.



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