Haddad e a doutrinação

Por Miguel Nagib*

Os artigos do jornalista Ali Kamel sobre a contaminação ideológica nos livros didáticos do ensino fundamental e médio (O Globo, 18/09 e 02/10/2007, para ler, clique aquiaqui ) atraíram finalmente a atenção da grande imprensa para o grave problema da doutrinação político-ideológica nas escolas.

Por conta das denúncias, o petista Fernando Haddad, Ministro da Educação, tem sido chamado pela mídia a dar explicações sobre a inclusão dessas obras no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do MEC e sobre a ideologização do ensino em geral. E, por incrível que pareça, está conseguindo escapar das cobranças que lhe são feitas: nem ele, nem o MEC têm culpa pelo que está acontecendo – se é que alguma coisa está de fato acontecendo.

Na entrevista concedida por Haddad à revista Veja (Páginas Amarelas, edição de 17/10/2007), o tema foi objeto de duas perguntas, cujas respostas reproduzimos e comentamos a seguir. A primeira é esta:

Veja – O senhor concorda com os educadores segundo os quais as escolas no Brasil estão passando uma visão retrógrada do mundo a seus alunos?

Haddad – Isso acontece, sim. Um problema evidente é o dogmatismo que chega a algumas salas de aula do país. Ele exclui da escola a diversidade de idéias na qual ela deveria estar apoiada, por princípio, e ainda restringe a visão de mundo à de uma velha esquerda. Não é para esse lado, afinal, que o mundo caminha. Sempre digo que em uma igreja ou em um partido político as pessoas têm o direito de promover a ideologia que bem entenderem, mas nunca em uma sala de aula. A obrigação da escola é formar pessoas autônomas – capazes, enfim, de compreender de modo abrangente o mundo em que vivem. Todo procedimento que mutila isso é incompatível com um bom processo de aprendizado. Em suma, educação não combina com preconceito.

A pergunta está mal formulada. Para começar, “visão retrógrada” não define aquilo que as escolas brasileiras estão transmitindo aos alunos. A jornalista não disse – talvez para não melindrar o entrevistado, que é devoto de Karl Marx e filiado ao PT desde criancinha –, mas essa visão retrógrada tem nome e sobrenome: chama-se ideologia e propaganda político-partidária deesquerda.

Ainda quanto à pergunta, cabe notar o seguinte: quem diz que as escolas estão transmitindo aos alunos uma visão retrógrada do mundo não são os educadores. Ao contrário: os profissionais da área acreditam que essa visão é altamente progressista, na medida em que voltada para a “construção de uma sociedade mais justa”. É isso o que eles aprendem e ensinam nas faculdades de educação, história, geografia, sociologia, etc. No que se refere ao problema da doutrinação ideológica em sala de aula, não é injusto dizer que os educadores são os principais responsáveis pela septicemia ideológica que devasta a educação no Brasil. São eles os agentes transmissores do vírus gramsciano que se espalhou por todo o sistema de ensino. De tanto escutar e repetir que a educação é um ato político, sequer reconhecem a ideologização como um mal a ser evitado. É inevitável, dizem eles, todo mundo tem um lado, não existe neutralidade, etc. Ao abandonarem a noção de objetividade científica, perderam também a de honestidade intelectual. Portanto, que fique claro: a instrumentalização do conhecimento para fins político-ideológicos não só não está sendo denunciada pelos educadores, como vem sendo por eles praticada e ocultada.

Passando à resposta, observa-se que o entrevistado, não podendo negar a existência da doutrinação político-ideológica nas escolas, age como todo dono de escola quando recebe uma denúncia de assédio ideológico praticado por professor: trata de minimizar o problema. Segundo Haddad, “o dogmatismo chega aalgumas salas de aula do país”. Não é assim não, ministro. Chega a praticamente todas. De norte a sul, de leste a oeste, da pré-escola ao ensino superior, a militância esquerdista ocupou todos os espaços. Em colégios de classe média alta, filhos de empresários aprendem que seus pais são exploradores inescrupulosos. Os vestibulares assumem essa mesma perspectiva, atuando como filtros ideológicos de acesso ao terceiro grau. Nas universidades, o sectarismo esquerdista domina as ciências sociais e já se espalha para outras áreas. Todo mundo sabe disso e o senhor, na posição que ocupa, não tem direito de não saber.

Por outro lado, embora a “visão retrógrada” não tenha sido identificada na pergunta, Haddad identificou-a quase que involuntariamente na resposta, ao afirmar que o dogmatismo “restringe a visão de mundo à de uma velha esquerda”. Atenção, leitor, para o adjetivo. Ao usá-lo, o ministro quer induzi-lo a acreditar no seguinte: não é “a esquerda” que promove a doutrinação ideológica em sala de aula, mas sim “uma velha esquerda”. Afinal de contas, a esquerda representada pelo Ministro e pelo PT é moderna, pluralista e democrática, não é mesmo? Não seria capaz de promover ou endossar essa covardia intelectual.

Esse tipo de argumento é recorrente entre os esquerdistas. Ele sempre os socorre quando se trata de tirar o corpo fora. Com a mesma pureza de alma ou cara-de-pau, não me cabe julgar, o ministro é capaz de afirmar que não foi a esquerda, e sim a velha esquerda que matou 100 milhões de pessoas ao longo do séc. XX. Os nazistas de hoje também devem acusar os velhos nazistas pelas atrocidades cometidas em nome da sua ideologia.

A esquerda que seqüestrou a educação brasileira não é velha nem nova: é a esquerda de sempre, aquela para a qual os fins justificam os meios. Portanto, pensam eles, se é para “construir uma sociedade mais justa”, não é errado abusar da inexperiência, da imaturidade e da falta de conhecimento de um jovem para fazê-lo empunhar as bandeiras certas.

Como quer que seja, o fato é que a ideologia e o partido do Ministro da Educação foram e continuam a ser os grandes beneficiários da ação dos doutrinadores. Graças ao trabalho desenvolvido pela militância esquerdista nas escolas, está cada vez mais difícil encontrar um jovem brasileiro, na faixa dos 15 aos 25 anos, que não alimente um ódio irracional ao capitalismo e um amor ainda mais irracional à utopia socialista; e que não esteja doidinho para entregar os destinos da nação a políticos que pensam (ou fingem que pensam) como ele.

E é isso o que me leva a desconfiar da sinceridade do ministro quando ele afirma que as pessoas têm direito de promover a ideologia que bem entenderem numa igreja ou num partido, “mas nunca em uma sala de aula.” Desconfio porque sei que o partido do ministro sofreria um golpe duríssimo se tivesse de renunciar à prática da doutrinação ideológica em sala de aula; e, sendo Haddad um esquerdista, ele não teria muita dificuldade em sufocar esse “escrúpulo burguês” em nome do objetivo maior de lutar pela “construção de uma sociedade mais justa”. Mesmo porque, diria ele, o partido não pode amordaçar sua militância e, ademais, é preciso respeitar a liberdade de cátedra.

Mas se o ministro estiver mesmo determinado a acabar com essa prática covarde e imoral, eu lhe digo que é muito fácil: basta fazer uma campanha para conscientizar os estudantes dos seus direitos em relação ao comportamento do professor em sala de aula. Explico.

Ao lado da liberdade de ensinar está a liberdade de aprender, ambas asseguradas pelo art. 206 da Constituição Federal.

A doutrinação político-ideológica em sala de aula constitui claro abuso da liberdade de ensinar; abuso que implica o cerceamento da correspondente liberdade de aprender, já que, numa de suas vertentes, essa liberdade compreende o direito do estudante de não ser doutrinado. Ora, só um estudante consciente dos seus direitos poderá defendê-los contra a ação abusiva de professores militantes.

Aos direitos compreendidos na liberdade de aprender do estudante correspondem, entre outros, os seguintes deveres do professor:

– O professor não abusará da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente político-ideológica.

– O professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, religiosas, ou da falta delas.

– O professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula.

– O professor não incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

– Ao abordar temas controvertidos, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as diversas versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.

– O professor deve conhecer os argumentos e teorias de que discorda tão bem quanto aqueles em que acredita, a fim de poder apresentá-los como o faria se fosse seu defensor.

– O professor não promoverá em sala de aula debates preordenados a corroborar a “verdade” ou a “superioridade” de determinada corrente política ou ideológica.

– O professor não criará em sala de aula uma atmosfera de intimidação capaz de desencorajar a manifestação de pontos de vista discordantes dos seus, nem permitirá que tal atmosfera seja criada pela ação de alunos sectários.

Se o Ministro da Educação estiver realmente disposto a acabar com a doutrinação ideológica nas escolas – e ele tem obrigação de fazer isto –, basta afixar e cada sala de aula ou em cada pátio de escola do país um cartaz com essa relação de deveres. Tal como ocorre com os consumidores em geral, os próprios alunos saberão se defender se conhecerem seus direitos. Conscientizar os alunos é libertá-los do jugo do professor militante.

Mas é claro que o governo petista, principal receptador dos milhões de furtos ideológicos praticados diariamente pela militância esquerdista nas escolas, não cometerá esse desatino. Ainda que tivesse vontade, o Ministro Haddad não teria coragem de lançar essa campanha de vacinação em massa contra a doutrinação ideológica em sala de aula. Ele sabe que, politicamente, seria um ato de traição e suicídio. Seria morder a mão dedicada e leal que alimenta seu partido há mais de vinte anos. Embora disponha dos meios para fazê-lo, o governo federal não fará nada, rigorosamente nada, para combater a septicemia que tomou conta do sistema de ensino.

Seria injusto, no entanto, atribuir toda a responsabilidade ao governo federal. Os governos estaduais e municipais, no caso das escolas públicas, e os donos das escolas particulares também deveriam fazer a sua parte.

Cabe aos estudantes e seus pais exigir de suas escolas e das escolas de seus filhos que adotem medidas concretas para combater a doutrinação ideológica em sala de aula. O cartaz antidoutrinação é uma idéia. Só o professor militante vai reclamar.

Veja – Por que, então, o MEC aprova livros didáticos com esse viés?

Haddad – Temos um sistema de escolha dos livros didáticos com o qual, em tese, especialistas de diferentes matizes ideológicos concordam. É simples. Mandamos os livros para as melhores universidades públicas do país, e são os professores escolhidos por elas que opinam. Depois, as escolas escolhem os livros da lista que consideram mais apropriados. Nesse sistema, portanto, o MEC não atua como um censor com superpoderes, mas, sim, delega a tarefa a um conjunto de pessoas qualificadas para executá-la. Não inventamos essa fórmula. A avaliação de trabalhos acadêmicos feita por pares funciona em vários países desenvolvidos – e aliás muito bem.

Na teoria, o sistema de escolha dos livros didáticos não é ruim. O MEC realiza periodicamente um processo de avaliação e seleção das obras didáticas que serão incluídas no Guia do Livro Didático, no caso do ensino fundamental, e no Catálogo do Programa Nacional do Livro, no caso do ensino médio; as editoras interessadas em participar do processo submetem suas coleções ao julgamento do MEC; os avaliadores contratados avaliam e selecionam as obras que deverão ser incluídas no guia e no catálogo; o guia e o catálogo elaborados pelo MEC são enviados às escolas e, a partir deles, os professores escolhem livremente as obras que serão adotadas durante o ano letivo. Essa escolha é comunicada ao MEC, que contrata com as editoras a produção e distribução gratuita dos livros escolhidos.

Como diz Haddad na entrevista, “o problema não é propriamente com o modelo que implantamos, mas justamente com a visão dogmática que ainda circula em parte do meio acadêmico”.

Ele está certíssimo, exceto na parte em que minimiza, novamente, o grau de contaminação ideológica do meio acadêmico. Na verdade, o problema é muito mais grave e não dá sinais de que esteja refluindo, ao contrário do que sugere Haddad, ao dizer que a visão dogmática “ainda circula”.

Além disso, para ser honesto, Haddad teria de dizer: “a visão dogmática que nós, da esquerda, introduzimos no meio acadêmico” .

Esse dogmatismo marxista domina, hoje, todo o sistema de ensino. As faculdades de educação, sociologia, história e geografia, por exemplo, estão impregnadas de uma ideologia igualitária que detesta o capitalismo – e, por tabela, os EUA, o estado de Israel, a Igreja Católica, os jesuítas, a colonização, a burguesia, os empresários, os proprietários, o agro-business, os militares, os meios de comunicação, as multinacionais, a globalização, a Coca-Cola, o Mc Donalds, George W. Bush, etc., etc. etc. – por enxergá-lo apenas como um regime gerador de desigualdades.

Na medida em que todos os sujeitos do processo seletivo são formados nessa mentalidade – o autor da obra, o avaliador do MEC e o professor que a escolhe – é inevitável que ela se reflita nos livros didáticos. Todos pensam, enfim, com a mesma cabeça.

Haddad reconhece o problema, mas falha gravemente ao minimizá-lo e ao não reconhecer a responsabilidade da esquerda, especialmente do seu próprio partido, pela situação.

Falha, também, ao não assumir responsabilidade administrativa pela contaminação ideológica dos livros didáticos. Mesmo delegando a avaliação pedagógica dos livros a professores universitários sem vinculação direta com o Ministério, o MEC responde pela avaliação. De acordo com os editais de convocação para inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas a serem incluídas no guia de livros didáticos, a avaliação pedagógica das coleções está “sob a integral responsabilidade da Secretaria de Educação Básica do MEC”, tanto no caso do ensino fundamental como no caso do ensino médio. Se o livro didático promover o racismo, por exemplo, e o avaliador contratado pelo MEC deixar passar, a Secretaria de Educação Básica tem a obrigação legal de desqualificar a obra. Não vai censurá-la, mas vai excluí-la do PNLD ou do PNLEM, como fez, por recomendação do avaliador, no caso da cartilha ideológica de Mário Schmidt. Repito: ao contrário do que o Ministro Haddad quer fazer crer, o MEC não é obrigado a acatar a opinião dos avaliadores. A responsabilidade pela avaliação é da Secretaria de Educação Básica do MEC, que contrata os serviços dos professores avaliadores, mas não é obrigada a acatar seu parecer.

“Reafirmo minha opinião sobre o assunto”, diz o ministro nessa entrevista. “Eu acho que cada um deve ter suas convicções e crenças, mas, de novo, quando se fala de educação é preciso ser mais pluralista, ir de A a Z no espectro ideológico – senão, simplesmente não dá certo.”

O ministro tem o cuidado de dizer que se trata da “sua opinião”, o que significa que ele não pretende impô-la a ninguém. Afinal, ele sabe que no governo e no PT a imensa maioria discorda do que ele acha. Se Haddad se engraçar, vai acabar escutando do próprio chefe: dá certo, sim, cumpanhero; se não desse, tu não era Ministro da Educação.

Miguel Nagib é advogado e coordenador do ESP

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